terça-feira, 27 de dezembro de 2011

John Van Seters - Em busca da história: historiografia no mundo antigo e as origens da história bíblica - capítulo 8

Davi toca harpa para Saul, de Rembrandt
  Embora alguns gêneros israelitas encontrem correspondência nas várias civilizações mencionadas anteriormente, devemos adotar uma abordagem diferente ao estudar a historiografia de Israel. Nesta região, as "correntes da tradição" se combinaram na forma histórica - uma forma literária comparável apenas à historiografia grega.
   
   A fim de entender como os gêneros historiográficos do Oriente Próximo contribuíram para a história bíblica e a fim de compreender melhor a própria forma de história, dedicarei especial atenção ao historiador Deuteronomista (Dtr) nos livros de Josué a 2 Reis. Seria importante resgatar a definição de história apresentada no início deste estudo: "a forma intelectual na qual uma civilização presta contas a seu passado e a si própria".
     
     A partir de agora analisaremos até que ponto a história deuteronomista se enquadra nesta definição e investigaremos se a escrita da história realmente se manifestou em alguma forma ou em algum estágio anterior ao Dtr. 
    
    A inexistência desta forma de escrita da história das outras civilizações do Oriente Próximo nos impede de partir do pressuposto de que em Israel a história era uma forma de consciência e identidade nacional evidente por si mesma. 
   
   Se assumirmos que os livros bíblicos de Josué até 2 Reis representam uma escrita da história anterior e independente da história como um todo, devemos demonstrar sua função como tradição da identidade.

    Considerando que o surgimento da escrita da história em Israel é geralmente associado às várias partes dos livros de Samuel, este será o ponto de partida de nossa investigação.
 
   O levantamento das investigações sobre a historiografia israelita nos mostrou que, segundo os estudiosos, os livros de Samuel partiram de uma antiga forma de narrativa lendária e marcam o surgimento do melhor exemplo de escrita da história antes de Heródoto - a Estória da Sucessão.



   Essas teorias atribuem ao Dtr um papel menor dentro do processo de compilação, destacando apenas a sua complementação das tradições de Samuel e Saul. Para estes estudiosos, o único gênero já existente era a Heldensage, que precisava ser editada para ganhar forma e coesão.
 
    Por outro lado, a Estória da Ascensão de Davi e a Historia da Corte supostamente documentam a historiografia mais antiga e foram incorporadas à história deuteronomista com poucas alterações. Mas estas teorias gerais se defrontarão com inúmeros problemas literários, a partir do momento em que examinarmos com mais cuidado os vários grupos de estórias e a relação existente entre elas.
 
    O estudo detalhado das partes e da sua inter-relação é de fundamental importância para as teorias sobre o desenvolvimento da escrita da história em Samuel.
a. A estória de Saul
   
   Desde a época de J. Wellhausen, as estórias sobre Saul têm sido divididas em dois conjuntos, geralmente caracterizados como Fonte Antiga e Fonte Recente. A Fonte Recente, que inclui as antigas tradições sobre o reinado de Saul, compreende as estórias de 1Sm. 9,1 e 10,17-27 e os capítulos 2,13 e 14. A Fonte Antiga, composta pelos capítulos 12 e 15, é geralmente atribuída ao editor Dtr e supostamente contém algumas tradições antigas.

    
    M. North diverge desse esquema e considera a fonte Dtr como parte da obra histórica mais abrangente do Dtr (Josué a 2ª Reis). De acordo com essa teoria, as estórias da Fonte Antiga se integram à história do Dtr como tradições independentes, e não como um documento contínuo. Em algumas investigações recentes sobre as estórias de Saul, os estudiosos sugeriram duas possibilidades: ou as antigas tradições compunham de fato uma narrativa contínua sobre Saul, ou então a edição pré-deuteronômica das estórias de Saul foi escrita antes da versão deuteronomista definitiva.
 
   Essas revisões da teoria de Noth pressupõem a habilidade de identificar indícios das antigas tradições na Fonte Recente. O nome dos dois filhos de Samuel e o lugar onde eles atuam (1 Sm 8, 1-3) sugerem a existência de uma antiga tradição por trás desses versículos.
 
      Na minha opinião, esses versículos e o resto do capítulo foram inventados depois. 
    A ideia de que Samuel nomeou os seus dois filhos como juízes de Israel e de que eles atuaram em Bersabéia não condiz com a história israelita do período antigo. Será que o domínio de Samuel, como juiz, era tão amplo a ponto de incluir o sul de Judah?
   Somente no final da monarquia é que Bersabéia se tornou um importante centro administrativo.
     
       Sendo assim, o relato dos acontecimentos do capítulo 8 é altamente anacrônico.
As atribuições de administrador e magistrado também condizem com o último período, pois os juízes de Tiro acumulavam essas duas funções no período neobabilônico.
 
    Além disso, os dois filhos de Samuel, que não fizeram jus ao cargo, podem ser comparados aos dois filhos de Eli, que abusaram do seu poder sacerdotal:
em ambos os casos, o pai idosos não consegue controlar os filhos.
      Esta cena foi inventada para explicar por que o povo estava reivindicando a mudança na forma de governo.
     
      A descrição do "comportamento consuetudinário do rei" (mishpat hammelek) em 8, 11-17 também pode ser identificada numa fonte antiga, que criticava o exemplo dado pelos reis estrangeiros.
 
   Considerando que o Dtr condenava a apostasia dos governantes, é possível que esta caracterização do rei represente uma tradição independente.
Mas 8:18 deixa claro que se trata de uma descrição dos reis israelitas recentes.
 
    Além disso, o livro de Deuteronômio e o Dtr reconhecem que a instituição monárquica é estrangeira (ver Dt. 17,14 e ss.) e que está sujeita a dois tipos de corrupção:
a ampliação demasiada da corte, que leva à escravização do povo, e a apostasia da religião.
 
   Se a descrição da monarquia neste texto já se assembleia à corte de Salomão, a passagem do Dt. 17,14 e ss. é mais parecida ainda. Deve-se notar que a estória da vinha de Nabot em 1 Reis 21 ilustra muito bem o interesse do Dtr pelos males sociais da monarquia mencionados nesse texto.
 
     As desgraças trazidas pela monarquia são enfatizadas aqui, porque Samuel está tentando dissuadir o povo da ideia de eleger um rei. Depois que ele fosse eleito, de nada adiantaria prevenir o rei e o povo dos perigos da apostasia, como faz Samuel em 1 Sm 12.
    Não entendo porque esta lista dos abusos não pode ser atribuída ao Dtr.
 
   Seguindo a linha de O. Eissfeldt, vários estudiosos sugeriram que 1 Sm. 10, 17-27 não constitui uma unidade, mas sim uma combinação de duas tradições diferentes e conflitantes sobre a eleição de Saul para monarca.
    Eles afirmam que em uma tradição (v. 20-21b) Saul foi escolhido por sorteio, enquanto na outra ele foi indicado por uma revelação divina. (21b-27).
    Com base nas indicações desse texto, Birch afirma que o sorteio só seria respeitado se a pessoa escolhida estivesse presente. Mas este certamente não é o caso.
 
    Como mostrou J. Lindblom, um método de tirar a sorte era colocar diversos nomes num recipiente e escolher um deles. Esse procedimento é bastante simples.
   Para organizar melhor o processo, sorteava-se primeiro o nome das tribos. Depois sorteava-se os clãs de tais tribos, as famílias, as casas, os homens candidatáveis, até que por fim um nome era escolhido.
     Neste caso, o indivíduo não tinha de estar necessariamente para ser sorteado. De qualquer maneira, a suposta ausência de Saul na assembléia colocou em questão essa forma de eleição por sorteio.
 
     A situação exigiu a consulta ao oráculo, que acabou confirmando a indicação.
Desta forma, a estória da eleição de Saul por sorteio foi simplesmente incrementada com um pouco de suspense e caracterização da personagem.
Não há razão para se dividir as fontes e não há evidência alguma que o relato tenha se baseado em antigas tradições.
 
   Se 10, 17-27 constitui mesmo uma unidade dissociada do nível mais antigo da tradição, então se torna difícil recompor uma história contínua de Saul.
 
    No seu estudo sobre as tradições de Saul, Birch defende a ideia de que - antes da edição do Dtr, que ele considera frágil - essas estórias foram organizadas por uma "edição profética".
Birch acaba mostrando o ponto crítico da sua argumentação em 10, 17-27, quando é forçado a demonstrar que nenhuma parte desta unidade pertence ao Dtr.
    
    A sua teoria se mostra falha neste momento, pois 10, 17-19 se assemelha nitidamente ao discurso profético do Dtr em Jz. 6, 7-10.
   
    Além disso, Sm. 10-19 recapitula o capítulo 8 e continua a partir de 8, 22. O artifício literário de interromper o relato sobre as pessoas em 8, 22 e retomá-lo em 10, 17 nos leva a considerar a passagem de 9,1 a 10,16 como um tipo de digressão.
  
  O texto de 1 Sm. 10, 28, que menciona o "direito do rei" (mishpat hamm lukah), provavelmente se refere a Dt. 17,14 e ss.
  
   Além disso, Samuel segue o modelo deuteronômico de Moisés, ao escrever as leis num livro e colocá-lo diante de Iahweh (ver Dt. 31, 224 e ss.).

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Gênesis - Comentário Geral

William Turner. Light and Colour (Goethe's Theory)
   Gênesis é o nome dado por grande parte dos cristãos ocidentais ao primeiro livro da Bíblia, também o primeiro livro do pentateuco (do grego Πεντάτευχος, ou cinco "caixas", em referência aos cinco livros inicias da Bíblia). O livro também é conhecido pelos judeus como Bereshit (בְּרֵאשִׁית, isto é, בְּ ou "no", e רֵאשִׁית, ou "começo"), que é a primeira palavra hebraica do livro (os judeus nomeiam seus livros a partir das primeiras palavras figurando em cada um deles).
 
  A trama dos livros do pentateuco é entrecortada por divagações, histórias heróicas, listas e leis que vão da criação do mundo e dos primeiros homens até a chegada do povo escolhido à terra que Deus lhes teria prometido. O gênesis se resume a narrar a história da criação do mundo e do homem por Deus, e as subsequentes punições que o homem sofre por não prestar a devida obediência a seu Senhor. A primeira punição se refere à queda do homem que vivia em estado de perfeição no paraíso terreal, o jardim do Édem, descrito como uma porção do oriente próximo, atual Iraque. Outra punição segue, o dilúvio, e do mundo pós diluviano ressurge com o mesmo grau de corrupção. Deus estabelece, portanto, um pacto com Abrãao, que se provaria um homem incorruptível e leal a Deus, recebendo em troca diversas benesses. Por intermédio de seu filho, Jacó (mais tarde renomeado como Israel), Abraão e outros membros do clã são aceitos na monarquia egípcia num período de secas que os obriga a abandonar a terra prometida, Canaã, para qual Abraão havia se deslocado por ordem de Deus por ocasião de seu pacto divino. O livro se encerra com o estabelecimento dos herdeiros de Abraão no Egito.

   A autoria do gênesis é um caso de debate. Embora a tradição atribua a redação do livro a Moisés, importante líder das sagas hebraicas, os textos não fazem referência a um autor específico. Além disso, é forte a impressão de que se referem a Moisés e aos fatos narrados como distantes no tempo, inclusive apresentado diversas etiologias e origens de toponímias que evidentemente não fariam sentido caso a redação fosse contemporânea. No entanto, se pudermos aceitar que o Moisés histórico possuiu grande proximidade com as descrições bíblicas, não há porque duvidar que ele realmente tenha fornecido o núcleo duro dos textos que foram reunidos para se redigir o gênesis e, de forma mais ampla, todo o pentateuco, (com exceção, é claro, da descrição acerca da morte do próprio Moisés em Deuteronômio).

   Como veremos em outros momentos, os debates acerca da autoria dos livros bíblicos são bastante complexos, e envolvem admitir até que ponto fontes orais ou escritas puderam servir como arcabouço literário para a preservação de histórias e versões religiosos que possivelmente remontam a milênios. Também concernem os estudos a respeito da possível edição da Bíblia via diversas tradições literárias, como a chamada Hipótese Documentária, hoje relativamente criticada não apenas pelas religiões mais literais, que nunca a haviam visto com bons olhos, mas também pela academia.
  
   Atualmente, há considerável divergência a respeito de como datar os livros bíblicos. Para muitos, essa questão pode parecer supérflua ou até herética. Mas para os biblistas, os historiadores e arqueólogos (e para os autores desse blog), saber quando os textos foram escritos é essencial quando se está comprometido com a busca de informações objetivas e sensatas. Para a teoria da história, o contexto de criação de um texto é essencial para não se incorrer em leituras anacrônicas e apontamentos equivocados. Desta forma, seria bastante estranho encontrar em Tucídides, autor do século V a.C., referências ao conceito cristão de penitência, uma vez que são distantes no tempo. A própria transformação da língua impede que um termo grego qualquer seja traduzido da mesma forma e com a mesma conotação em documentos da Atenas clássica e do novo testamento, uma vez que os contextos de produção desses textos estão separados no tempo por muitos séculos.
   
   A mesma crítica é válida para documentos espacialmente distantes, e é por isso que a busca de autoria normalmente se confunde com uma esforçada tentativa de localização geográfica daqueles que escreveram o texto. Veremos como esse elemento é essencial para se compreender, por exemplo, os evangelhos e os manuscritos do mar morto.
   
  No caso do gênesis, a datação é realizada a partir de uma análise de elementos estilísticos, uma comparação com outros textos mais facilmente datáveis, pela análise de eventuais incoerências internas, pela filologia e, ultimamente, pela comparação com a evidência arqueológica, mais facilmente datável. Fazemos isso porque os documentos bíblicos foram, de forma geral, preservados em manuscritos bastante posteriores à sua formulação original, motivo pelo qual não é possível datá-los com técnicas como o carbono 14. No caso da arqueologia, temos acesso a evidências mais pontuais no tempo, normalmente graças ao cálculo baseado na estratigrafia e em datações relativas por meio de cerâmicas e outros objetos característicos. A maior parte dos especialistas concorda que os livros do gênesis devem conter passagens que remontam no máximo até a Monarquia Unida (século XII a.C.) e no mínimo até o século VI a.C., embora existam opiniões dissonantes exigindo uma redação mais antiga ou mais tardia, dependendo da posição ideológica dos críticos.